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Sinfonia em Sol Maior para Fogo e Pedra

Publicado em Diário de viagem
Nasik, 17/02/1975 (d)


Já de volta a Nasik, deixo o meu pequeno "escritório" na casa dos parsis, onde lia e tomava notas, e saio à rua para assistir a mais um dos crepúsculos que tanto freqüentaram a minha alma. Ofereceram-me sempre as formas e as cores, e um movimento tal, capazes de acompanhar-me delicadamente através das solidões enormes.

Quando se abre o abismo interior e a ele somos chamados, seria por demais desesperador imaginar que de lá jamais voltaríamos com nossa própria luz. Mas ao ver o sol, tão majestoso, entregar-se tranqüilamente à escuridão, uma coragem desconhecida inverte o grande terror em beleza infinita.

Sagrada concreta metáfora sobre o efêmero das coisas claras. O próprio sol vem trazendo a noite pela mão. Ele não é expulso, ele se afasta. Parece já ter fecundado a pedra e agora se vai, deixando à noite o tempo da gestação silenciosa. Parece também não querer ferir com a sua luz os delicados olhos dos habitantes da noite.

Ao crepúsculo o sol sempre me pareceu dizer – Não temas! Não temas! Aceita a noite.

Do mesmo modo que durante o dia as mil sombras resistem à luz agarradas cada qual ao seu objeto, atrás, à frente, em torno de nós, das árvores, das montanhas, e ao cair da tarde parecem avolumar-se, unirem-se todas numa única e poderosa escuridão a assenhorear-se de tudo, assim também, durante a noite, a treva não reina absoluta. Lá estão as estrelas, a lua, os vagalumes... e os olhos de um gato. Há também os picos gelados, a lava de algum vulcão... e as flores brancas. Há o candil na superfície do mar... e há sempre alguém que acende uma fogueira.

Os antigos egípcios diziam do sol que depois do horizonte iria ao mundo dos mortos iluminá-lo. Deste modo ele ilumina os mortos: afastando-se, dando espaço e tempo aos outros sóis afastados – aos outros deuses – tornando-se tênue e delicado, indireto. Durante a noite é o mundo dos mortos, mas este é o nosso mundo também.

Os antigos chineses chamavam Yang o lado ensolarado de uma montanha, onde brilhavam seus estandartes coloridos, e chamavam Yin o outro lado – sombreado – da mesma montanha. Viam que os dois juntos, luz e treva, avançavam um sobre o outro, opostos complementares num ciclo infinito. Às trevas dentro da luz e às luzes dentro da treva chamavam o pequeno Yin dentro de Yang e pequeno Yang dentro de Yin.

O grande Tao, inteiro em pedra e fogo, está aqui, novamente a revelar seu ritmo inaudível, sua música silenciosa, a dançar todos os dias diante dos nossos olhos e à beira dos precipícios da alma.

Um carro de boi, ou melhor, de búfalo, já muito usado, segue a chiar em seu balanço e já vai sendo apanhado na tessitura da noite. E também se descolore o Godavari, vão se indefinindo suas margens intensas. Uma mulher recolhe os seus saris e lençóis que secavam ao lado de uma das escadas de pedra que permitiam acesso ao leito do rio.

Agora em seu nível mais baixo, no inverno, o Godavari não se deixa adivinhar o terrível assassino em que se transforma à época das monções, no início do verão. O povo, sem muita opção, constrói casas precárias no leito do rio logo assim que as águas começam a baixar. Meses depois serão implacavelmente destruídas.

Um pouco mais a noroeste, num dos altos dos Ghates Ocidentais, ao redor de Brahmagiri, ou na própria montanha, como diz o mito, nasce este grande rio que atravessa todo o Decão, cortando-o ao meio no sentido noroeste-sudeste. Atravessa inteiramente os estados de Maharashtra e Andra Pradesh e vai fazer um delta no Golfo de Bengala. Nasik é a primeira grande cidade em seu curso, ele passa por aqui como um viajante que jamais se vai. E lá vai ele por dentro da noite...

Em paz, volto à casa dos parsis, como se tivesse assistido a uma grande apresentação musical e, de fato, acompanhava-me de algum lugar nenhum, a sereníssima melodia da "Ária na Corda Sol", de Bach. Não sei se influenciado pelo nome da nota, essa melodia sempre me trouxe a sensação quase física de um magnífico pôr-do-sol.

Depois de anotar no meu diário os acontecimentos de hoje o irmão de Mernosh levou-me à casa de um seu amigo, geólogo apaixonado por música. Sem atentar para a coincidência com o que havia pensado e sentido ainda há pouco, conversamos muito sobre a geologia deste sub-continente ouvindo alguns discos de música clássica indiana. Prometeu-me uma lista dos melhores discos que na sua opinião eu deveria levar para casa e uma outra lista com os lugares geologicamente mais interessantes e problemáticos da Índia. Os parsis, após o jantar, convidaram-me para um "wiskey". Um.

Imaginei agora um título: "Sinfonia em Sol Maior para Fogo e Pedra".


Obs.: este artigo foi publicado na revista Rubedo

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