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Nas cavernas dos Pândavas e o Grande Silêncio

Publicado em Diário de viagem
Pandavlena, 17/02/1975 (c)

Monte Trirashmi – vista geral das Cavernas dos Pândavas

Com uma lambreta (scooter) emprestada por outro amigo, Vijay levou-me a um monte (Monte Trirashmi) que está a cerca de cinco milhas de Nasik (pouco mais de 7,5km), na estrada para Bombaim.

Desconhecia completamente aquele lugar e suas cavernas-templo. Eram vinte e quatro. Não tão espetaculares quanto as de Ajanta e Ellora, que ainda espero contemplar com meus próprios olhos e coração, mas mesmo assim impressionantes. Não constavam do meu mapa e me surpreenderam muito.

Não sei porque esse nome Pândavas (Pandwas, em inglês) já que, por serem budistas e jainistas, não têm nada a ver com aqueles personagens do Mahabharata que protagonizaram o grande conflito épico ao combaterem os Káuravas, seus parentes próximos. Deve ser obra da imaginação popular, que busca preencher com suas próprias associações o inquietante vazio que ronda qual um fantasma os desamparados vestígios de uma história interrompida.

Não havia ninguém.

A subida era um tanto árdua, de tal forma que procurei deixar para trás o meu amigo e aproximar-me solitário daquela rocha transformada, tornada dócil, amiga. A respiração rápida e profunda causada pelo esforço do caminho parecia ter purificado-me a alma.

À medida que ia voltando à normalidade do meu ritmo iam surgindo ao meu redor as Presenças.

Estavam ali e agora aqueles homens desde há mais de dois mil anos. Cortavam as rochas e davam forma a seus Budas e Bodisatvas. Poliam as imagens, poliam as paredes, poliam o teto e o chão. Poliam as suas almas e as formas que davam a elas.

Pequenos cubículos de cerca de 4m² eram as celas de cada um dos monges. Vestíbulos, salões de reunião, cisternas para captar a água das chuvas, altares...tudo inventado na pedra... uma enorme escultura! Sinto clara e intensamente a alegria daqueles de nós a penetrarem lentamente a dura matéria, abrindo espaços por dentro das grandes concentrações do nada, vazios onde habitar os homens e suas almas e seus nomes. Inventavam o lado de dentro da montanha.

Começavam pelas colunas que sustentavam nenhum teto, meras lembranças das antigas construções de madeira que abrigavam a religiosidade dos seus ancestrais. Inventavam janelas e portas que, de início, davam para dentro da escuridão e da densidade, para dentro do obstáculo mais perfeito, e só depois de inventado o dentro davam para fora, para a luz e o ar, permitindo o gozo da paisagem que antes os desabrigavam. E iam adiante, impossibilidade a dentro, invertendo a morte, transformando em casas e templos o que era útero infértil e só poderia ser túmulo.

Entrada do Chaitya e colunas
Entrada e colunas de outro Vihara
Colunas do Vihara (mosteiro) ao lado do Chaitya (templo)

Uma das cavernas era um Chaitya – Salão para realizar-se o ritual de "caminhar em círculo" (circumambulatio) ndash; que tinha a forma de um cartucho, um casulo comprido, feito para abrigar um enorme cilindro de pedra, indubitavelmente um renitente Shivalingam (o falo de Shiva), que ainda persistia no imaginário do budismo mais ortodoxo. No entanto, em sua parte superior, não deixava de ostentar os ornatos de uma estupa. Uma série de colunas, bem próximas umas das outras, definiam um corredor entre elas próprias e a parede da caverna, passando por trás do "Lingam-Stupa", onde os monges circulavam ritualmente durante as práticas de meditação em grupo.

Interior do Chaitya, Stupa semelhante a um Shiva-lingan e colunas para a prática da "circumambulatio"

Este Chaitya, a caverna nº 18, soube depois, é a mais antiga destas cavernas tendo sido escavada na segunda metade do primeiro século a.C. à mando de Bhattapalika, esposa de um funcionário real cujo nome era Aghetyana e filha de outro funcionário real, o senhor Arahataya. É o que diz uma inscrição feita em duas colunas (Não vou me deixar levar por quaisquer irritantes semelhanças com o que acontece no Brasil, desde o início de sua História até o atual presidente Geisel, com os nossos funcionários públicos e o nepotismo que promovem. Vou fazer de conta que estou de férias!).

Até o final do sec. II d.C. várias outras cavernas foram escavadas pelos monges Hinayana, que não usavam imagens de Buda mas tão somente símbolos não antropomorfos, como a estupa para circum-ambulação. As imagens de Buda e dos Bodisatvas começam a ser criadas aqui a partir do sec.IV até o sec. VI pelos budistas Mahayana.

Com exceção deste Chaitya todas as outras cavernas são mosteiros (vihara) onde existem as celas dos monges e as salas onde ensinavam o Dharma ("Lei", "Doutrina") aos discípulos e habitantes da antiga Nasik e arredores.

Em um desses mosteiros, muito amplo e com uma acústica excelente, um belo e enorme Buda em alto relevo parecia dominar todo o ambiente com sua calma e discreta majestade.

Relevos budistas no interior de um Vihara inacabado
Outros relevos do mesmo Vihara

Pandavlena, em Marathi, quer dizer "cavernas dos Pândavas" mas este é apenas um nome moderno, e falso, o antigo nome do lugar era Trirashmi ("Três vezes majestosa", ou "Três vezes real"). Uma referência às Três Jóias: o Desperto (Buddha), a Lei (Dharma), e a Comunidade (Sangha)? Ou alguma alusão às gerações de funcionários públicos apadrinhados pelo rei? Não sei. Tomara que não.

Inscrições em cavernas-templo são raras em toda a Índia, mas aqui há várias delas e que lançam algumas luzes sobre a História deste lugar.

No Sec.II d.C, o Rei Gautamiputri Yajnashri Satkarni, da dinastia Satvahana, dominou grande parte do Decã (região meridional da Índia, ao sul da planície indo-gangética). Mas sua mãe tinha sobre ele o estranho poder que quase todas as mães têm e tiveram sempre: o de influenciar seus filhos, por bem ou por mal, ou por nada, a fazerem exatamente o que elas – consciente ou inconscientemente – querem que seja feito, não importa se com gosto, desgosto ou sem qualquer gosto. Usando o poder do Rei, ela mandou escavar, segundo uma inscrição, a caverna nº 3.

Inicialmente a caverna nº 20 foi ocupada por Bhopaki, um conhecido asceta que, por algum motivo, não a completou. A tarefa ficou com Vasu, mulher de Mahasenapati Bhavagopa, no sétimo ano do reinado de Gautamiputri (cerca de 166-198 d.C). Outra mulher!

A caverna nº 10 contém uma outra inscrição que diz ter sido escavada com doações de Ushadatta, genro de Kshatrapa Nahapana, por volta do ano 120.

Detalhes de um Vihara inacabado

Algumas cavernas estavam incompletas, deixavam a viva impressão daqueles séculos em que o budismo foi perdendo fôlego na terra que o viu nascer (do sec. VII ao sec. XII). Os recintos apenas esboçados... as paredes sem polir... os budas inacabados... a dura rocha e rude e crespa. A carne do nada a exibir para os homens do futuro a sua vitória silenciosa.

Ainda me inebriava com os sutras que ecoavam em torno do grande cilindro de pedra, preenchendo aquele oco e dando uma alma à montanha, quando à porta do Chaitya ouço o resfolegar de uma outra presença: era o Vijay arfando a sua existência concreta. Antes mesmo de tornar a seu próprio ritmo, começou a falar qualquer coisa sobre os Pândavas.

Pedi a ele apenas um minuto, apenas o tempo suficiente para numa saudação assistir o desfazer-se daquele Grande Silencio, o que foi a maravilha dos que transformaram a pedra.


Obs.: este artigo foi publicado na revista Rubedo

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