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Revela-se uma mulher delicadamente: Mângala

Publicado em Diário de viagem
Nasik, 17/02/1975 (b)


Pela manhã fomos à casa de Sudha e Mângala, cunhado e irmã de Vijay, para pegar minhas poucas coisas. Tínhamos resolvido que eu ficaria definitivamente hospedado na casa dos parsis, com mais conforto, e mesmo uma mesinha que puseram no quarto em que dormimos ontem. Poderia escrever e estudar

Senti um indisfarçável desapontamento nos olhos de Mângala. Talvez lhe parecesse estar sendo ingrato, talvez se magoasse por ter preferido outra casa que não a sua. Mas não demorei a perceber que era uma outra coisa...

Era uma mulher que se perturbava, revelando-se delicadamente no transbordamento inconsciente dos seus desejos reprimidos.

Ao percebê-la, assim tão exposta, pensei em ficar e maravilhar-me com aquela flor que mal adivinhara, mas essa súbita embriagues tornou-se mais um dos motivos para que eu me fosse dali.

Mângala pediu para que eu voltasse de vez em quando, de preferência à noite, quando volta do trabalho.

Percebi o fremor de sua juventude (e o da minha), senti o prazer que ela sentia ao olhar-me nos olhos enquanto dizia ser este ato, na Índia, algo proibido às mulheres e que os homens, por respeito, deveriam evitar. Contemplei a frustração de seu corpo de menina, ligado por arranjos familiares a um marido alcoólatra e muito confuso.

Não pude impedir que a minha alma se acendesse numa fantasia romântica. Mas fui embora.

Na casa dos parsis resolvi experimentar a mesinha e lá fiquei durante umas duas horas a escrever meu diário. Li, também, num livro de Vijay, alguma coisa sobre a arquitetura da Índia e do Paquistão. Logo ele veio buscar-me e fomos almoçar numa pensão. Como Vijay está sempre agitado e falando muito, comi o que pude, mas não foi muito. Dois bolinhos de alguma coisa e três chás (com leite). De sobremesa um pan (pwn). É que durante o almoço ele insistiu para que comêssemos rápido e fôssemos visitar sua irmã no banco onde trabalha. Disse-me que ela ficaria muito contente com minha visita, não duvidei... Fui.

De fato, lá estavam os seus olhos negros cheios de espaço e profundidades, cheios de interior e úmidos, cheios de mim e sonhos e... cheios de negro.

Apresentou-me a uma amiga e a todos os seus colegas de trabalho. Estava feliz, seus olhos estavam sem roupas, parecia relaxada e ofegante, quase nua aos meus olhos, e agradecida.

Um rapaz franzino, Dilip, apresentou-se dizendo que gostaria muitíssimo de corresponder-se com alguém no estrangeiro. Evitei a carapuça respondendo que daria o seu endereço a alguma garota brasileira. Ele ficou encabuladíssimo (parecia envergonhado com a "ousadia" da minha sugestão) e, gaguejando muito, disse preferir corresponder-se com um homem.

Dilip Indravadan Shah. Kalantri Nivas. Near Dena Bank. Nasik Road. Nasik District. Maharashtra. India. Este é o endereço.

Mângala apenas olhava-me e sorria, não falava nada, nada havia para ser falado. Olhei um pouco mais demoradamente para o seu belo sari em tons de azul, seus braços agitaram-se e abraçaram-se a si mesmos, nervosos.

– Namastê! cumprimentei-os. E com o coração contrariado, fui-me dali.


Obs.: este artigo foi publicado na revista Rubedo

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