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Subida à Montanha de Brahma (Brahmagiri)

Publicado em Diário de viagem
Trimbak, 16/02/1975


Depois de sairmos do templo do "Senhor de Três Olhos" (Trimbakeshwar), eu e Vijay nos juntamos a Mernosh que nos aguardava pacientemente. Sendo um parsi, e não um hindu, também não podia entrar no templo. Como Vijay não armou nenhuma questão para que ele entrasse conosco, só restou ao seu fiel escudeiro aguardar a nossa volta sentado diante das quatro portas "cósmicas", que se dispõem em direções opostas, tentando adivinhar por qual delas sairíamos. É claro que Vijay não saiu pela que entrou e ainda me pediu para sair por outra. Só para confundir o amigo e, talvez, ministrar-lhe alguma "sábia" lição a respeito da Confusão Universal. Não sendo por isso, seria apenas porque Vijay é um incorrigível e adorável brincalhão, um "trickster".

Convidaram-me, então, a tomar um chá. Enquanto o fazíamos (numa espécie de "bar", "vendinha", ou coisa parecida), Vijay, e depois Mernosh, surpreenderam-me ao engolirem de repente, cada qual, um punhadinho de erva. Em minha mão Vijay pôs outro tanto e recomendou-me: – não sinta o gosto!

Perguntei o que era aquilo e ele apenas me respondeu: – vinho indiano (Indian wine).

Essa expressão eu já tinha ouvido outras vezes referindo-se a aguardentes de cana, ou seiva de palmeira, que chamavam também whiskey ou rum. Bebidas alcóolicas, servidas sempre com muita água, as quais quase nunca pude identificar, pelo gosto, o que me diziam ser.

Mas...erva? No...seco? Não teria ele dito – trepadeira, cipó indiano? (Indian vine).

Notando a aflição dos dois ante a minha silenciosa vacilação, resolvi não perguntar mais nada. Engoli logo o troço de uma vez só e deixei pra ver depois no iria dar...

A tarde já ia em meio e não demoraria muito a anoitecer. Vijay e Mernosh discutiam se seria muito arriscado subir àquela hora a "Montanha de Brahma" (Brahmagiri, leia-se, em português, Bramaguíri). Mernosh sugeriu voltarmos amanhã, Vijay, indócil e já com um sorriso meio estranho, perguntou minha opinião, já garantindo que nada de mal aconteceria conosco, pois meu poder e o dele, sob as bênçãos de Krishna, protegeriam... Mernosh!

Para mais ou menos calcular o risco, perguntei a ele quanto tempo achava que duraria a subida – cerca de duas horas, respondeu. Imaginei, então, que a montanha não seria maior que a Pedra da Gávea (842 metros acima do nível do mar), no Rio de Janeiro, que eu já tinha subido algumas vezes e, por isso, tornou-se um parâmetro para decisões como esta. Imaginei também que estaríamos de volta no início da noite.

Consultei meus Budas, já que, com o Krishna de Vijay e o Ahura Mazda de Mernosh, subiriam conosco a "montanha" considerada pelos hindus como uma das formas do próprio Shiva. Mas com um nome em homenagem a Brahma! Eram muitos os deuses em questão. Os Budas, como sempre, nada disseram e devolveram-me a decisão. Achei graça no inusitado da situação e resolvemos subir ao alto.

As pessoas, que pela manhã tinham subido, já estavam voltando. Eram peregrinos que, por escadas e passagens cavadas na rocha, por trilhas íngremes cheias de cansaço, foram visitar o lugar onde Shiva liberou a água do rio Ganges, contida em sua cabeça, para atender ao sábio (Rishi) Gautama que, certa vez, por descuido, assassinou uma linda vaca (estava tentando afastá-la, com irritação). E que, por azar dele, não era uma vaca qualquer, mas Jaya, o grande amigo de Parvati, mulher de Shiva, que resolvera, naquele fatídico dia, pastar disfarçado de vaca. Gautama, muito arrependido da falta cometida, praticou rigorosos sacrifícios rituais no alto desta montanha buscando sensibilizar o deus para que o perdoasse.

Aconteceu que Ganga (o rio Ganges), na forma de uma bela mulher, estava gostando muito de ficar na cabeça de Shiva e disse não estar preparada para separar-se dele. Recusou-se, portanto, a oferecer-se a Gautama, para o seu banho expiatório.

Shiva, irritado com a moça, realizou uma dança assustadora (Tandav Nrutya) para que ela cedesse e começasse a fluir. Golpeou o chão e desapareceu.

Apavorada, a deusa brotou como uma fonte no lugar golpeado mas, também irritada, não deixou que o sábio mergulhasse nela o seu pecado. Desapareceu também e foi brotar lá embaixo, em Trimbak. Quando desceu, o asceta viu apenas a nova fonte sumir para reaparecer mais tarde sobre a montanha em vários lugares. Depois disso a deusa desapareceu de vez... furiosa!

Gautama não conseguiu banhar-se em suas águas.

Mas, pensando melhor, considerou que Gautama tinha as costas aquecidas pelo poderoso Shiva, e deixou que algumas fontes permanecessem. O velho, já desesperado e implorando à deusa para que parasse com aquilo, ainda não podia curar-se da falta cometida, pois as águas baixavam muito quando delas se aproximava.

Resolveu, então, apelar para a magia: cercou o rio que se formava a partir da fonte de Trimbak com um capim encantado e rogou uma praga, ou algo que a valha, contra Ganga.

A bela deusa serenou, conteve a sua ira e deixou que o santo Rishi retornasse à paz.

O espaço cercado por Gautama é Kushavarta, o tanque de oblações de Trimbakeshwar, e o rio Ganges que flui a partir dele, chama-se desde então, rio Godavari, que cruza todo o Decão para sudeste e deságua na Baía de Bengala.

Por meia rúpia cada compramos três bastões de bambu e, mais adiante, compramos três pacotes de amendoim – tudo sugerido por Vijay. Assim armados, partimos ao encontro dos numerosos bandos de macacos (do gênero Rhesus) que, se não forem devidamente mimados, distraídos ou porreteados, costumam atacar furiosamente à mais leve irritação. Muitas vezes atacam para levar objetos que lhes pareçam interessantes, tais como bolsas coloridas, óculos, broches, canetas, máquinas fotográficas... As najas, que se arrastavam por ali, também inspiravam cuidados.

Deixei minhas botas em Trimbak e aluguei um par de chinelos, pois o monte é considerado o próprio Shiva e já foi considerado um grave pecado simplesmente pisá-lo.

Subíamos a todo vapor, ou a algo parecido. Brahmagiri não era uma alturinha qualquer (soube depois que eram 1800 pés, cerca de 549 metros de altura e, no alto, 1295 metros em relação ao nível do mar), mas não me lembro de grandes cansaços. O ambiente envolvia-me de modo familiar. Lembrava-me constantemente da Pedra da Gávea, que imaginei ser apenas um pouco mais alta. Não vejo o que possam ter em comum a Serra do Mar e os Ghates Ocidentais, mas quase nada me parecia estranho. A vegetação, as pedras, a temperatura. O descansaço parecia estranho. E só ele.

Pensava estar, apenas, em boa forma física, afinal tenho caminhado muitíssimo, mas ao ver tão serelepes meus dois sedentários amigos, que tinham ares de passear na praça aos domingos, julguei tal disposição atlética como obra e graça das bolotinhas daquela erva.

Numa caverna, solitário, imerso em suas orações e mantras, encontramos um Sadhu (asceta shivaista). Procurei ser discreto para não atrapalhar o santo homem. Passei em silêncio, pisando macio e devagar, quase pedindo desculpas por existir. Mas Vijay, logo atrás de mim, sem a mínima cerimônia, foi direto ao fulano, caverna adentro, e esculhambando todo o ritual, começou a fazer perguntas que ele mesmo se apressava em responder. O eremita, surpreso, parecia ouvi-lo. Vijay era enfático e convicto de suas idéias, que intuitivamente desenvolvera, creio eu, dos princípios da austera e intelectualizada filosofia Vedanta, mas salpicada com todos os deuses do panteão hindu.

Vijay debochava do ritualismo mecânico do asceta e de todos os crentes de um modo geral. Não sentia nele qualquer reverência especial por alguma divindade, dentre as tantas que pululam por esta terra piedosa (muito embora não se cansasse de falar delas). Julgava-se, ele mesmo, a divindade que importa... e divertia-se bastante com isso. Falava como se fosse íntimo do próprio Brahma, a Realidade Primeira e Última.

Depois de um longo discurso, quando o Sadhu já demonstrava estar de saco cheio, resolvemos ir embora na hora em que o coitado começou a acender mais uma dúzia de incensos.

No caminho encontramos mais dois eremitas, aos quais, evidentemente, Vijay não pôde resistir. Um irritou-se conosco e nos mandou andar, o outro achou graça pelo estranho acontecimento, já que ali só chegavam pessoas desejosas em ouvir seus ensinamentos e conselhos, e não o contrário.

Disse-me Vijay que a sua missão, e a minha também, era a de ensinar o caminho para a "verdadeira paz da mente". Naquele momento estávamos metidos num caminho e nos divertíamos muito com as caras dos eremitas, nossa mente parecia em paz, mas ao lembrar das bolotinhas de erva não pude reprimir a dúvida de ser esta paz, que a dos Sadhus, mais verdadeira.

Não demorou muito para que nos víssemos cercados por um bando de uns vinte macacos, todos sagrados, como soem ser todos os macacos na Índia. Distribuímos os amendoins e, pela aflição dos meus amigos, quase apavorados, comecei a dimensionar aquelas zoológicas criaturas como se fossem uma matilha de vira-latas mal-humorados (experiência pela qual já tinha passado, em Petrópolis). Com a diferença de que os macacos não pareciam mal-humorados, muito pelo contrário, pareciam crianças curiosas.

Exaspera-me um pouco, na Índia, essa mistura estranha de criancice e morte, essa desconcertante cumplicidade que parece negar os opostos extremos.

A consciência da morte! O que é isso, na Índia? Terra onde até os não-hindus parecem respirar a certeza de muitas reencarnações.

Mas é verdade que tinham caninos pontudos e, de vez em quando, olhavam de soslaio com um brilho maldoso nos olhos que chegava a me arrepiar os cabelos. Esse brilho não vi nos vira-latas. Acho que meus dois companheiros devem ter estórias, ou as ouvido, que podem justificar tanto medo. Tentei agir como em Petrópolis, segui andando calmamente como se nada estivesse acontecendo.
Um deles, um saudável macho, com pouco mais de meio metro de corpo e uns 30cm de cauda rígida e curvada, parecia exibir sua virilidade sobre uma pedra, a meio metro do meu rosto. Olhei-o nos olhos, como em Baudha. Pensava em Shiva Pashupati, quando Vijay tomou-me das mãos o saco de amendoins, que procurava guardar ainda com alguns poucos, para a volta. Ele o atirou longe. O macaco que estava comigo vacilou por um momento, mas foi correndo junto com os outros à cata dos petiscos.

Enquanto nossos primos brigavam entre si, e subiam e desciam pelas pedras, se coçando, pulando e gritando, prosseguimos.

O sol já estava se pondo quando chegamos ao alto de Brahmagiri. Levamos umas três horas para subir o monte. O crepúsculo dava ao lugar um ar de não-sei-quê, de não-sei-de-onde e nem-pra-onde e muito menos pra quê.

O templo parecia abandonado. Não era muito diferente dos tantos outros que tinha visto em homenagem à Shiva. Era pequeno e o tanque junto a ele, por algum motivo, capturou-me toda a atenção. Talvez por receber sua água direto de uma fonte que vem do meio das pedras, um pouco mais acima, e que alimentará, lá embaixo, o tanque de Trimbak (como é maravilhoso subir às fontes!); talvez pela enorme rachadura que dividia quase ao meio uma das paredes do tanque, a ilustrar o abandono do culto a Brahma, esse deus discreto e demasiadamente abstrato para merecer do povo uma atenção mais apaixonada.

Brahma tira do caos todas as coisas, Vishnu as preserva e Shiva as destrói. A realidade última tem essas três faces. Ao deus de três faces chamam os hindus de Trimurti. Mas tentando preservar as coisas que amam e destruir as que odeiam as pessoas tendem a ignorar Brahma, pois este só existe depois da criação. E a criação é o que parece importar, o criado, não o Criador. Há na criação um lugar para ele porque existe na mente humana a demanda por um responsável por todas as coisas que existem, inclusive ele. Brahma é a abstração, a imaginação criadora, o que, em última análise, cria e recria todo o Universo.

No cristianismo também não temos templos especialmente em louvor à Deus, como os judeus o tinham (o de Salomão, em Jerusalém, em louvor a Javé) e ainda os têm (as sinagogas), e os muçulmanos que louvam Alá em suas mesquitas. Os cristãos, de um modo geral, devotam-se a Jesus e os católicos, em particular, também cultuam os santos que lhes parecem mais próximos de seu dia-a-dia. E deixam que Deus esteja apenas de um modo implícito.

Na Índia o deus da criação, certamente, é respeitado e participa do imaginário popular. Mas é principalmente o deus da casta superior, a dos Brâmanes (Brahmins). Ele inspira uma certa má-vontade, pois só se manifesta após a destruição do que amamos. E quem de nós gosta disso? Os templos de Vishnu e Shiva são, por isso mesmo, os mais freqüentados e bem conservados.

Os Shivaítas (adeptos de Shiva) chegam a ter um certo desprezo por Brahma, o que se reflete nas estórias que contam a seu respeito. Uma delas se passa no Himalaya durante o casamento de Shiva e Parvati onde, na frente de todos os sábios e deuses, Brahma, erotizado pela beleza da noiva, não conseguiu se conter e acabou por lançar um jorro de esperma. Tentou disfarçar, mas não adiantou muito porque tudo foi percebido por Shiva. Brahma quase foi morto por Shiva, que furioso, teve que ser aplacado pelos convivas com muito jeito, elogios e louvores.

Shiva, mais calmo, chegou a oferecer a Brahma a água do Ganges para que ele se purificasse. O que aconteceu. Brahma ficou tão agradecido pela benevolência do estranho deus que acabou ficando muito seu amigo, a ponto de confundir-se com ele no decorrer dos tempos.

Aqui, no alto desta montanha, certa vez, homenageado por Brahma, Shiva lhe disse: "Serei conhecido pelo seu nome". E é por isso que a "Montanha de Brahma", na verdade, é a do próprio Shiva!

O templo que eu tinha visto, portanto, era dele e não de Brahma, como tinha pensado, levado obviamente pela sugestão do nome do lugar. Era só uma espécie de "homenagem de consolação" oferecida pelo "Benévolo" (Shiva).

Em silêncio assistíamos as últimas luzes quando a solenidade do momento foi estraçalhada pela proposta gaiata do Vijay de tirarmos duas fotos: uma, minha, como o Cristo crucificado e outra, dele, como Shri Krishna tocando flauta... Acedi, após um instante de vacilação, achando graça dessa nossa brincadeira com os deuses. E como são diversos esses deuses que, num descuido do destino, encontram-se no alto de Brahmagiri! Cristo e Krishna, a cruz e a flauta!

Entrada do Chaitya e colunas
Entrada e colunas de outro Vihara

Como Vijay não se manifestava, convidei Mernosh a posar também para uma foto. Ele, que era um parsi ("persa"), não soube como representar-se como Zardosht (Zoroastro / Zaratustra), já que este não é mesmo representado pela tradição, a não ser pelo fogo, o elemento de Ahura Mazda (Ormuz), a luz que combate as trevas. Mernosh tentou imitar o sol, mas acabou desistindo (o que de fato não é lá muito fácil...). Disse-me que apareceria nas fotos através do que ainda resta do sol, ao fundo.

Já era quase noite quando começamos a descer. Um filete de quarto crescente nos acompanhava lá no céu. Lembrava-me uma naja de perfil. Preocupei-me com os macacos. Vijay e Mernosh pareciam de porre, e que riam de qualquer coisa, resolveram preocupar-se comigo. Desandaram (esta é a palavra exata), então, a tratar-me como se eu fosse uma dama...

– Tome cuidado! pra cá, tome cuidado! pra lá, diziam a todo momento. E me pegavam pela cintura, seguravam a minha mão, quase levavam-me no colo a cada trecho do caminho que achassem mais complicado. Não podia andar direito. Atrapalhavam-me com tanta "ajuda". Na verdade, eram eles que se apoiavam em mim e, quando afinal machuquei o tornozelo, acharam uma graça enorme.

– Você está sentindo, agora? Está experimentando a coisa? Percebeu? Vijay não se cansava de perguntar. – Não, não estou sentindo nada, respondia eu. – Mas vai sentir, retrucava ele, sem se dar por vencido.

Sentia-me bem e alegre, mas nada que um pequeno gole de verdadeira cachaça não fizesse melhor. Ofereceram-me cigarros, talvez para apressar "a coisa", e lá fomos nós montanha a baixo a brincar com a fumaça.

Até que resolveram "ajudar-me" ao mesmo tempo e me pegaram, os dois, pela cintura usando um pretexto qualquer. Já não me incomodava tanto a percepção de uma latente homossexualidade no jeito dos indianos tratarem-se entre si e, na verdade(seria preconceito meu?), muitas vezes nem tão latente assim. Apesar dos Kama Sutra, o contato entre os sexos opostos sofre pesadas e tradicionais restrições. O contato dos sexos iguais, nem tanto.

Depois que me agarraram, não largaram mais.

Feito crianças, eu no centro, corríamos abraçados pelo estreito caminho a escorar-nos mutuamente, brincando com as pedras, com o abismo.

E foi assim que chegamos à caverna de um outro Sadhu.

Da alma de Vijay brotou, então, a suprema brincadeira do dia: diante do Sadhu não nos desgrudaríamos! Seríamos uma aparição da Trimurti, ou de alguma outra divindade desconhecida pelo asceta, ou mesmo um demônio.

Com todos nossos seis braços, pois, e nossas três cabeças, pedimos ao pobre homem, que já se aprontava a iniciar seu ritual (Puja) para a noite, que nos oferecesse um pouco d'água. Ele nos olhava estarrecido e sério, tentando ignorar-nos. Vijay insistiu, dizendo que seria muito perigoso fazer esperar a uma divindade.

– Depois do Puja, tentou o eremita, talvez pensando que desistiríamos da brincadeira. Certamente ele não conhecia o Vijay.

Ficamos os três, estáticos, diante das grades que fechavam a caverna, a acompanhar atentamente todos os movimentos do ritual. O Sadhu não conseguia disfarçar sua falta de atenção. Mesmo sendo uma brincadeira, não há, na alma dos hindus, espaço para o acaso. Imaginei que o homem procurasse ver naquilo tudo algum significado, talvez uma mensagem, uma resposta dos deuses. Ele parecia mesmo estar considerando essas coisas porque estava muito atento, senão ao Puja, à nós. Vijay sabia disso, e eu continha-me para não rir.

Afinal levantou-se o santo com sua barba desgrenhada, interrompendo as orações e, num misto indefinido de reverência, bom humor e irritação, deu-nos água numa cabaça, resmungando qualquer coisa incompreensível. Talvez um agradecimento pela visita, talvez uma praga, ou um exorcismo especial contra demônios. No caso, nós. Não se sabe.

Do meu lado esquerdo, com a mão esquerda, Vijay pega a cabaça. Ao mesmo tempo, Mernosh, do meu lado direito, com a mão direita, também pega a cabaça. E levam-na ao centro, à minha boca. Bebo, então, solenemente.

Vijay e Mernosh devolvem a cabaça e agradecemos com todas as nossas bocas e cabeças e nos despedimos com todos os nossos braços e mãos. O eremita retorna à sua santa paz e caímos os três numa enorme gargalhada.

De volta a Trimbak jogamos fora os bastões de bambu. As najas não apareceram e os macacos devem ter ido dormir. O crescente, um dos símbolos de Shiva, estava magnífico e ainda me parecia uma naja, outro símbolo do deus, de perfil. Olhei para os meus pés metidos em chinelos de borracha, que me levaram ao templo de Brahma, ou melhor, de Shiva, e à sua rachadura cósmica. Peguei de novo as minhas botas e, num relance, apossou-se de mim as dúvidas que atribuí ao Sadhu: o que significaria tudo isso? essa brincadeira? Preservamos o desejo, destruímos o sono e criamos uma estória... Não seríamos mesmo uma encarnação da Trimurti?

Deixei pra lá essas dúvidas e convidei-os, então, a tomar um chá. De verdade.


Obs.: este artigo foi publicado na revista Rubedo

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