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Na casa do irmão de Mernosh, vão os deuses dormir

Publicado em Diário de viagem
Nasik, 16/02/1975


Voltávamos à Nasik. O velho ônibus cinzento e amassado cumpria o seu destino de misturar gentes, de chacoalhá-las e... trocá-las de lugar.

Assaltavam-me as questões do Sadhu, ou melhor, as minhas questões a respeito do Sadhu:

O que é brincar com os deuses?

Será uma comunhão, ou uma afronta?

Considerava a intimidade entre homens e deuses do ponto de vista da consciência infantil.

Os deuses são potências, potestades. Tudo o que tem poder sobre todos nós, ou cada um de nós, considerado de um modo eterno, atemporal, fora da História, é um deus, ou está, provisoriamente, em seu lugar, em seu trono (dentro da História, politicamente determinado).

Podemos ter, ou não ter, consciência de um poder que atue sobre nós todos, ou sobre cada um de nós. Se podemos reconhecê-lo, dizemos, então, que o conhecemos e damos a ele um nome.

O adulto incorre numa série de conquistas que lhe dão algum poder na vida, ao mesmo tempo em que se despoja da esperança de conquistar outra série de poderes que reconhece estar fora de seu alcance. Por um lado domina, por outro é dominado. Chama-se a isso conhecer os seus deuses tutelares e, por conseguinte, conhecer também as potências inimigas e as amigas, e as indiferentes.

O tempo, as intempéries, as doenças, o sexo, o pai e a mãe, o homem e a mulher, a palavra, o alimento e a fome, a riqueza e a pobreza, a companhia, a amizade e a solidão, a luta, o medo, a coragem e a covardia, o nascimento, a velhice e a morte, os animais e as plantas, os heróis, os governantes, o amor e o ódio, as geografias, os sonhos, a beleza e o horror, o desconhecido, o estranho... Eis algumas das principais potências diante das quais nos diferenciamos de acordo com o nosso jeito de lidarmos com elas.

Alguns deuses serão favoráveis, outros não.

Se queremos um deus único, teremos que abstraí-lo sob o epíteto de um Todo-Poderoso Senhor, somatório de todas as potências que beneficiam e atazanam a pobre vida dos mortais.

A criança, ainda no início dessa longa, fascinante, e dolorosa caminhada, embora completamente desamparada, dependente, submetida a todos os poderes da vida, não conhece os deuses que a dominam pois apenas começou a separar-se deles.

Os deuses lhe são íntimos. Mas vão se revelando aos poucos à imaginação sob as formas mais fantásticas e sedutoras.

Uma criança não suportaria toda a sua incompetência e precariedade se não confiasse, intuitivamente, em seu poder futuro. Ela caminha para tornar-se um deus, e mais que isso, para tornar-se o Deus Único, já que ela é o germe de todas as possibilidades. Mas esse poder de esperar e construir o futuro, esse desejo de ser poderosa, de ser um deus, ou deusa, é, em si mesmo, um deus-deusa. O poder futuro é experimentado, desde já, como um poder agora.

A criança, de fato, é muito poderosa por ser agora o próprio futuro. Mas não conhece a si mesma, não se sabe um deus.

O adulto "conhece" a si mesmo e "conhece" os deuses. Exatamente por isso, porque se afastou dos deuses para conhecê-los, como obriga a vida, e sabe que não é um deles.

Se imagina, seriamente, ser um deus, na verdade não passa de um louco às voltas com um grande delírio de grandeza. Se não imagina nada, se não busca ser um deus, adquirir algum poder, trai a criança que um dia foi e ainda está a desenrolar o seu destino. Trai a criança que o trouxe até ali, à sua "adultez".

O que fazer? talvez continuar brincando no meio mesmo das discriminações, ser adulto e criança ao mesmo tempo. Deixar que essa ambiguidade entre o ser e o não-ser permita um viés, uma interferência, um riso profundo, uma graça divina. Brincar com os deuses talvez seja a única maneira de levá-los à sério.

Não estaria o Sadhu, em sua caverna, a divertir-se com o grande Shiva?

Uma cotovelada no nariz e uma joelhada no ombro trouxeram-me de volta ao ônibus.

Quando olhei o "agressor" reconheci o estranho homem, alto e sorridente por baixo de um pano sujo enrolado em sua cabeça, que estava junto ao motorista desde o início da viagem conversando muito com um outro homem do qual não me lembro a figura. Os solavancos do ônibus o tinham trazido para junto de mim,... acho. Tinha olhos cansados... mas faiscantes! Tinha o rosto enrugado... mas firme, como seu sorriso. Olhava-me nos olhos e não pediu desculpas pelo tranco.

Vijay e Mernosh conversavam num assento mais atrás.

O estranho fez-me lembrar do macaco que me olhava nos olhos durante o caminho para o alto da montanha de Brahma.

Pensei até em jogar-lhe alguns amendoins...

Sozinho com esse pensamento, senti vontade de dar uma gargalhada mas me contive e apenas sorri.

Ele pareceu ter percebido meu quase imperceptível sorriso pois alargou o seu e, dirigindo-se a mim, disse, muito simpaticamente: – hello, Sir! – hello! respondi, compreendendo neste momento um aspecto da imagem de Hanuman, o veloz deus-macaco da Índia, mensageiro de Rama (avatar de Vishnu), parente arquetípico de Ganesha, Hermes e Exu.

O estranho, agora para mim já não tanto, parecia acompanhar meus pensamentos. Parou de conversar com quem quer que seja, calou-se ao meu lado e dali o ônibus não o tirou mais. Nada mais falou, e também nada mais pensei. Não houve mais sorrisos. Ficamos algo sérios durante o resto da viagem.

Chegamos!

Senti que tinha chegado a Trimbak novamente.

O estranho lançou-me um último sorriso, que devolvi agradecido.

Ainda na rodoviária fui surpreendido por uma pergunta de Mernosh: – Você é mesmo um deus?

Vijay, durante o trajeto, o tinha convencido que sim. Não levei a sério a pergunta e apenas sorri enigmático absorvendo as faíscas que transbordavam dos olhos de Vijay. O parsi parecia descobrir algo, e eu me senti o próprio Papai Noel diante de uma criança maravilhada.

O irmão de Mernosh (não consigo lembrar o seu nome) nos esperava para o jantar, já era muito tarde, cerca de 23:00 h, e estava preocupadíssimo com a nossa demora. Estávamos famintos e a comida foi farta e muito gostosa. Fui, como sempre, o último a terminar.

Quando já íamos para o quarto Mernosh perguntou se eu não queria ir ao banheiro. Como não estava com vontade, respondi que não. Foi um espanto!

– Como não? você pode precisar ir à noite, insistiu ele. Antes de responder que então iria à noite, quando precisasse, achei melhor ir logo, e o fiz dando tratos à bola por que raios se espantaram tanto. Talvez fosse alguma falta zaratustriana muito grave... sei lá!

Mernosh parecia muito feliz por eu ter ido ao banheiro, talvez gostasse de saber que eu era mesmo humano, ou que os deuses também fazem xixi. E disse-me assim com muito bom humor: – às vezes eu também digo palavras sábias... e completou: – agora vou lhe mostrar os degraus que hão de conduzi-lo aos céus, me apontando a escada que levava ao quarto a mim reservado. Dei uma gostosa gargalhada, e percebi que, finalmente, ele tinha matado a charada do Vijay e compreendido a natureza lúdica e imanente do contato com os deuses.

Parecia mesmo muito feliz a deliciar-se com a sua descoberta pois ao mostrar-me o quarto, acendeu todas as luzes, e disse com um sorriso irônico mas delicioso: – Aqui você também tem estrelas!

Eu já não ria mais, fiquei emocionado, senti alguma vergonha do meu espírito crítico e debochado. Deve ser encantador receber um deus em sua casa e isso só é possível se você é uma criança... ou um sábio.

Sério e brincando ao mesmo tempo, como agora estávamos todos, disse a Mernosh que a partir de agora ele tinha se tornado um sábio. Ele sorriu reverente, debochado e agradecido. E foi-se embora para o seu quarto, encantado.


Obs.: este artigo foi publicado na revista Rubedo

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