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No templo do Senhor dos Animais (Pashupatinath)

Publicado em Diário de viagem
Nasik, 05/01/1975


Praça Durbar, centro de Kathmandu. Domingo. A manhã está fria e úmida. Mas minha alma, não, está muito leve. Sigo caminhando com calma. Nem o sol, nem o céu, chamam muita atenção. De vez em quando cai uma garoa breve. Sinto falta de uma mulher, e uma fome constante, que a todo instante me fazem lembrar ser um animal qualquer. Mas não me sinto mal.

Tenho visto crianças, sem qualquer cerimônia, defecando nas ruas e calçadas. Crianças! Mas quando vi um lama tibetano fazer o mesmo, um senhor que vinha caminhando em minha direção e, de repente, levantou um pouco o seu hábito e encolheu-se de cócoras, quase ao meu lado, na rua e, simplesmente, levantou-se, abaixou o hábito e continuou andando como se nada tivesse acontecido, inclusive sem limpar-se, e deixando para trás um surpreendente monte de excremento, dei-me conta, novamente, do animal que somos e que, apesar de toda educação, subjaz, e quando pode, aparece sempre. Nunca imaginei que um dia veria alguém, literalmente, "cagar e andar" (uma expressão chula, que tenho ouvido desde a mais tenra infância, indicando um descompromisso total com as consequências de algum ato desagradável para alguém).

Representações de cenas sexuais explícitas de casais, fazendo sexo oral, anal e grupal, inclusive com animais, são comuns nos entalhes de madeira dos braços que sustentam os telhados dos templos–pagode. É interessante ir ao mercado comprar biscoitos, maçãs e batatas-doces, em meio a orgias inenarráveis. Disseram-me que a voluptuosa deusa Indrani, protege os prédios com tais expressões do amor erótico, da fúria de seu marido, Indra, o deus védico dos relâmpagos, raios, trovões e tempestades. Uma espécie de pára-raios, portanto.


O Templo (Nath)

Resolvi caminhar até o mais sagrado santuário dedicado a Shiva que há no Nepal, a ponto deste belo reino ser considerado "a terra do templo de Pashupati".

Subindo pela margem ocidental do rio Bhagmati, o principal do vale de Kathmandu, a cerca de 7 km da capital, encontro um grande conjunto de pequenos templos votivos, estátuas e imagens de deuses hindus, como Ganesha, Karttikeya, Hanuman, Lakshmi, Vishnu e sua montaria Garuda, até mesmo o Buddha, e muitos outros. Há, também, numerosos santuários, cada qual com um "falo de Shiva", o Shivalingam, e outros muitos falos, mesmo sem qualquer santuário, espalhados a torto e a direito por todo canto, erigidos em diversas épocas, por personagens importantes do reino. Além de várias estátuas deles próprios.


Há degraus que levam às águas do rio onde toda sorte de banhos e rituais se realizam. Há plataformas de pedra (ghats), onde se fazem as cremações dos corpos e de onde, no mesmo rio em que se banham, são lançadas suas cinzas.

No meio desse amontoado de seres reais e fantásticos, ergue-se o Templo do Senhor dos Animais, local de peregrinação para hindus, desde todo o Nepal até o sul da Índia. Aqui se comemora o festival anual de Shivaratri, uma noite dedicada ao Senhor Shiva, que cai geralmente na última semana de Fevereiro, numa terça-feira.

Não se sabe exatamente por quem, ou quando foi construído o templo (como de resto pouco se sabe sobre a História nepalesa antes do séc. XVI). Mas acredita-se que a construção tenha sido erguida no séc. IV, pelo príncipe Pusoopush Deo, o quarto príncipe da dinastia Sooryabamsi, que o dedicou a Pashupati Mahadeva. Parece, também, que no séc. VIII teria sido reformado por Adi Shankaracharya.

Em 1349, o sultão Shamsuddin, de Bengala, invadiu o templo e lhe causou grandes estragos, principalmente a suprema ofensa de ter quebrado o seu Shivalingam. Mas o falo de Shiva foi reposto, dez anos mais tarde, em 1359, por um Primeiro Ministro dos reis Malla.

O templo foi reconstruído em 1697, pelo rei Bhupalsingh Malla, depois de ter sido destruído por cupins.

É um grande pagode, com dois telhados cobertos de metal dourado, que se encontra hoje em reformas, como quase tudo em Kathmandu, aguardando a posse do novo rei, Birendra Bir Bikram Shah Dev, no próximo mês.


Em frente ao portão sul, há várias imagens douradas de reis e rainhas da dinastia Shah.

No interior do templo há somente um "falo de Shiva" (Shivalingam), mas com quatro faces dele próprio. É uma escultura de pedra, cilíndrica (o falo, o eixo do mundo), representando o poder do deus que une o céu e a terra – o infinitamente superior e o infinitamente inferior – e que olha e pode ser olhado dos quatro pontos cardeais (as quatro faces).


Embora tivesse tentado, não pude penetrar nesse recinto, por não ser hindu.

Ajoelhado, olhando para a face oeste do lingam, há uma enorme estátua dourada do touro Nandi, "alegre", com seus testículos em evidência lembrando os antigos deuses teromorfos da fertilidade, montaria preferida de Shiva.

O Senhor dos Animais (Pashupati)

Na entrada do templo, então, pelo lado de fora, fiquei olhando na mesma direção do touro Nandi, observando uma grande imagem de Pashupati Shiva e seus dois filhos com a deusa Parvati: Ganesha e Karttikeya, sentados cada qual em seu trono de lótus. Dizer com a deusa é apenas uma expressão que se poderia esperar de um casal apaixonado, como eram Shiva e Parvati, mas como eram também muito irritadiços, independentes e por demais cientes de seus poderes divinos, acabaram por engendrar cada um o seu próprio filho.

Ganesha, o mais popular e reverenciado dos deuses hindus, certamente por ser o Guardião das Portas, o que abre os caminhos (ou os fecha), o que remove os obstáculos (ou os acrescenta), o Senhor dos Labirintos, é o filho exclusivo de Parvati. Este simpático adolescente com cabeça de elefante tem como montaria, um rato (que gosta de fuçar os interiores e não fica preso em labirintos).

Karttikeya, "Filho das Plêiades", também conhecido entre outros nomes como Skandha "jato de esperma", por ter nascido do esperma de Shiva, que foi lançado ao mundo, sem controle, por um descuido do deus ao ser interrompido em sua cópula com Parvati, e que depois de uma série de peripécias, caiu no rio Ganges. Filho exclusivo, portanto, de Shiva. É o antipático Senhor dos Exércitos, de olhos ferozes e arregalados, lembrado principalmente nas situações de guerra e, talvez por isso, um deus não tão popular quanto seu irmão. Tem por montaria um galo.
Mas os dois estão juntos na entrada do templo, Ganesha, sob um sol e um crescente lunar; Karttikeya, sob um completo sol com oito raios.

Abaixo da sílaba sagrada OM, Pashupati Shiva, com quatro braços, está representado de pé, segurando o Trishula, tridente que é símbolo da unidade de seus três aspectos (o poder masculino, o poder feminino e o absoluto) ou o símbolo do poder da junção do pensamento com a palavra e a ação. Uma serpente lhe serve de colar e dois rios descem do Himalaya por trás dele e passam a seu lado, à direita e à esquerda. Os rios que alimentam a vida, a fertilidade da terra, como o Bhagmati, o Ganges e todos os outros, são como os fios de sua cabeleira. Shiva é a própria montanha, o próprio Himalaya.

Pashupati Shiva tem sua imagem remontando à civilização do Vale do Indus, em Mohenjo-Daro e Harappa (há pelo menos 2500 anos a.C), onde foram encontrados selos de cerâmica mostrando-o em postura de yogue, cornudo, entre árvores e animais. Esses selos mostram evidências do culto à serpente (Naga), à Deusa-Mãe (Devi) e ao poder espiritual feminino (Shakti).

Segundo o Shaiva-Siddhanta, uma escola teológica do sul da Índia, o Senhor (Pati) prende com um laço (Pasha) seus animais (Pashu), para que cumpram os seus deveres, seus karman, e consigam a libertação.

Há uma relação hierárquica e interdependente entre Animal, Homem e Deus / Pashu, Pasha e Pati em todas as formas de existência (a bestialidade e a divindade estão enlaçadas tanto no homem quanto nos deuses e animais).

No homem se faz a ligação entre o animal e Deus. No animal, a ligação entre Deus e o homem (O homem se percebe ligado a Deus, no reconhecimento de sua animalidade). Deus liga o animal e o homem (Em Deus a bestialidade e a humanidade se conciliam).

Pashu é o animal, principalmente o animal selvagem, besta, bruto, não domesticado. Animal humano (a bestialidade no Homem). Originalmente era apenas o animal doméstico, gado, rebanho. Rebanho humano (o vulgo, bando, homens servis, escravos). A palavra é cognata à latina Pecus. Homens e deuses, somos todos Pashu perante o Grande Deus (Mahadeva).

Pasha é o laço, a armadilha. A ligação entre o animal e Deus em todas as formas de existência. Lei natural e ao mesmo tempo divina. O encontro do animal e Deus no homem. Os elos, arreios, correias, normas, rituais, paixões, ilusões, pecados etc. com as quais Deus ata, ama, seduz, prende, protege, obriga, ensina, castiga, domestica, domina os homens tal como estes obrigam e dominam os animais. Mas que pode libertar a alma se esta merecer a sua graça através do reconhecimento e devoção (bhakti) ao seu Senhor. Homens, animais e deuses, somos todos Pasha uns para os outros.

Pati é o Senhor, Deus. Shiva trata homens e deuses como estes tratam os animais e os homens. Todos somos Pati ante a nossa animalidade. Pati é a consciência divina entranhada na brutalidade de todos os seres.

Do outro lado do rio está a sagrada colina de Pashupatinath, também com muitos pequenos templos espalhados por toda parte. Enquanto subia, notei que o tempo se abrira bastante e que já havia sol e também o céu. Fiquei agradavelmente surpreso e não contive um leve e solitário sorriso, ao encontrar, bem no alto da colina, várias representações da união sexual (Maithuna) entre Shiva e Parvati. Cilindros de pedra encaixados em roscas de pedra, o lingam metido em sua yoni.

Estranhamente, senti um grande alívio, como se tivesse encontrado a mulher que me fazia falta...

O Templo da Senhora dos mistérios (Guheswari). Parvati

Do alto da colina de Pashupatinath, podia ver, cerca de ½km adiante, em seu lado oriental, o templo dedicado a Parvati, a esposa de Shiva.

Cercado por uma pequena mata, a construção, como se poderia esperar, não se expõe tanto quanto a de seu marido. O prédio foi desenhado segundo o Tantra Yantra, o triângulo sagrado que tenta mostrar graficamente, a gestação do princípio feminino.
Ele está no centro de um bem pavimentado pátio de pedra abraçado por fileiras de alojamentos para viajantes. Este templo é inteiramente diferente dos outros erigidos no vale de Kathmandu, que são em estilo pagode. No alto de um dos cinco telhados dourados há quatro serpentes, também douradas, como se fora uma coroa.

Dentro do templo, há uma plataforma oval e dourada e no meio desta plataforma, uma espécie de vaso ou recipiente, com uma abertura coberta por um kalash de prata (um tipo de pote) servindo como tampa, representa Parvati ou Guhe Kali.

O templo também é conhecido como sendo de Guhe Kali, dedicado a Kali ou Bhawani, antiquíssimas e poderosas mães, senhoras do tempo.

A localização do templo, sua estrutura e os mistérios do vaso e do kalash, sugerem ser este um templo dedicado à deusa Parvati e certamente referido ao Tantrayana.

Hindus e budistas compartilham aqui de igual devoção.

Uma lenda popular conta que antes de casar-se com Parvati, Shiva tinha como esposa Sati Devi que suicidou-se por causa da grande desatenção demonstrada a ela por seus pais. Enraivecido, Shiva estraçalhou sua família e, angustiado com a morte de sua bem-amada, pôs-se a percorrer os Himalayas carregando o corpo de Sati Devi, que foi se desmembrando pelos caminhos. Sua genitália caiu no lugar onde hoje é o templo de Guheswari.

Na entrada do templo, de novo, os dois filhos do casal: Ganesha e Karttikeya, mas desta vez ambos de pé sobre suas montarias, o rato e o galo.

Estive montado apenas sobre meus próprios pés, e o tornozelo esquerdo ficou inchado e dolorido. Mas não me sinto mal. De alguma forma estive participando, neste grandioso cenário, do drama da criação: macho e fêmea, instinto e arte.

Parvati, "A da Montanha" é a Senhora das cavernas, das reentrâncias, das anfractuosidades, dos locais de mistério, a vulva, o útero. É também a Senhora dos animais. Para ela realizam-se rituais onde se oferece leite.

Leite?

Huummm... tinha me esquecido, mas acho que agora vou comer alguma coisa, talvez alguns doces de leite. Lembrei-me que estou com muita fome.

Afinal, o mundo inteiro é o Templo do Senhor e da Senhora dos animais!


Obs.: este artigo foi publicado na revista Rubedo

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