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Para a Índia, à espera de uma decolagem

Publicado em Diário de viagem
Rio de Janeiro, 05/01/1974


Maravilhosa ave esta a de metal prateado, nave pássaro prestes a levantar-me em seu bojo ao outro lado do mundo, ao mundo do outro lado; a arrancar-me da terra onde nasci e levar-me longe a um lugar de onde possa ver-me aqui. Preciso tomar distância, vencer altura, por escapar da infância, essa prisão num lar, de toda coisa futura. Ânsia por decolar, livrar-me do chão e jamais chegar.
O 707 Boeing da Panam atrasou-se por alguma pane, mas é melhor assim, para que comigo dentro, ele não se dane num grande "boing". Anunciaram agora que era o mal tempo em Viracopos, melhor ainda se é o próprio tempo o que está em pane.

Para a Índia, à espera de uma decolagem... O que me move propriamente não é coragem, sinto que é coisa mais forte ainda, um poderoso instinto. Um torpor me obriga à viagem. É impossível ficar. Mais que temível ou qualquer coisa linda, voar para Índia é um império, mesmo não sabendo, exatamente, lá o que fazer com este Rogério, mas que outro, certamente, há de voltar.

O Estranho há de soltar-se e fazer-me um susto, há de interromper-me em meu disfarce, em meu discurso, justo então quando eu não quiser. Terei meu quinhão, meu ganho, minha perda. Haja o que houver hei de arriscar-me além da cerca, essa serpente protetora. Terei minha parte, a minha Moira, talvez um mestre, um monstro, uma mulher, alguma arte, ou tudo isso em mistura doida. Haverá um encontro reste o que restar desta aventura, e será um corte a me deixar mais pronto, espero, mais dentro da vida, mais perto da morte sempre esquecida, mais no centro, eu quero, mais forte, eu preciso, porque ficar a mercê da sorte, não é bom sem algum juízo.

Haverá um talho, um lanho, uma dor por onde o amor se soltasse e me transformasse o espantalho, assim, num deus humano. Talvez não volte, dependendo do que quer que se solte em mim nesse Estranho.

Tudo flui, enfim, Alguém, Alguma Coisa, meteu-me aqui, eu é que não me fui. Dele ou Disso não sei o nome e nem a mirada, não sei se é o Quê, ou Quem, talvez seja Ninguém e Nada. Irá arrastar-me pela Índia, pelo inferno e paraíso de suas paisagens, estas duas miragens: terra ímpia e sagrada, terra de erro e delícia, calma e agitada, assim como as outras terras, mas esta é especialmente alada, propícia aos vôos da alma, às decolagens.

Verdadeiro é o viajante em suas viagens quando sempre já chegou, já se afeiçoou ao seu caminho e sabe dele que é o lugar eterno. Só num caminho se há de chegar. Para ele, é longe tudo o que está perto e, ao mesmo tempo, nada é distante pois tudo está na paisagem, tudo é passagem e passagem é em todo lugar.

No terraço do aeroporto estão lá, em torno, muitas pessoas do meu laço, as que vieram me assistir em meu passo, que não importa seja um certo ou torto, e mas não será à toa. Aguardam o cerrar das nuvens, cortinas do espaço, ao fim deste primeiro ato e cujos acordes já surgem. Agita-se o anfiteatro. Rugem as turbinas. Um homem estremece ao meu lado. Dão-me adeuses (como se a eles já não houvera sido dado).

Acompanham o longo assovio feito de metal e vento, e do fogo que há no ventre do animal, em sua profundura, na entranha. Inicia-se o movimento do pássaro-rei em toda a sua arquitetura de aço. Esperam o momento do vôo, essa estranha coisa que farei. Breve, para eles, serei um ponto de luz a dissolver-se no espaço, na distância, qual um inseto, ínfima criatura sob um altíssimo teto, o infinito ventre antiquíssimo, e hei desaparecendo na noite escura.

Mas para mim, não, será diferente esse ritmo, estarei lá onde ninguém me veja, testemunha única de mim mesmo, senhor que seja só do meu desamparo, só da minha ânsia, devedor só da minha sorte. Entregue ao sopro, venha do coração, ou plantas, animais e pedras. No bojo do grande pássaro atravessando as trevas!

Será assim a morte?


Obs.: este artigo também encontra-se disponível no Rubedo

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