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No Templo do Despertar (Bodhnath)

Publicado em Diário de viagem
Baudha, 05/01/1975


Depois de comer dois coa (doce de puro leite) e um chá (com leite) e dois vada sambar (bolinho de alguma coisa com um molho gostoso) continuei minha caminhada pela estrada que vai à Gokarna e Sankhu, vilarejos que vivem e crescem ao redor de seus templos (Gokarneshwar Mahadev e Sankhu Vajrayogini). Parece, aliás, que todos os vilarejos do Nepal vivem em torno de algum templo e das estórias de seus deuses. Essa estrada, próxima à margem direita do rio Bhagmati, passa por Baudha, o pequeno vilarejo que se esparrama aos pés do Templo do Despertar (Bodhnath).

O nome do templo presta-se a vários equívocos, devido, certamente, às tantas línguas e tradições e suas respectivas traduções mais ou menos cultas ou, pelo menos, cuidadosas. Tibetanos, nepaleses, indianos, chineses, ingleses, alemães, franceses cada qual com seus erros e nuances... Todos metendo os seus eruditos bedelhos na tentativa de contar e explicar para os seus leitores as sutilezas do pensamento (?!) budista. Sinto-me, aqui, também no direito de meter o meu (bedelho), em português:

Tenho encontrado, entre outras variantes, Boudhanath ou Bouddhanath traduzidas como o "Senhor da Sabedoria"; Buddhanath "Templo do Desperto", ou "do Iluminado"; Bodhnath, mas identificada como sendo uma palavra composta por Bodhi Natha, traduzida por "Senhor da Iluminação".

Bodhi significa "Iluminação", "Compreensão", "Percepção", "Reconhecimento", "Entendimento". Natha significa "culto" e também "Senhor" mas nath significa "templo, local de culto". Budh- / Bodh- é uma raiz verbal que significa "Despertar", "Tirar do sonho", "Voltar a si", "Recobrar a consciência", "Perceber", "Notar", "Reconhecer", "Observar", "Saber", "Compreender", "Entender", "Considerar", "Iluminar".

Prefiro, portanto, considerar apenas o nome Bodhnath, mas traduzido como "Templo do Despertar" ou, o que talvez seja ainda mais exato, considerando as sugestões de sua arquitetura, "Templo que Desperta".

Baudha situa-se bem no centro do vale de Kathmandu junto à antiga rota comercial que desce de Lhasa e vai até Patan, muito próxima daqui, e segunda das três maiores cidades que dominam o vale, outrora três pequenos, mas muito orgulhosos, reinos independentes: Kantipur, hoje Kathmandu; Lalitpur, hoje Patan; e a ainda hoje Bhaktapur (ou Bhadgaon).

Do "Templo do Senhor dos Animais" (Pashupatinath) ao templo do Despertar há menos que 1km, talvez, numa coincidência jocosa, porque de Shiva à Buda haja menos que um pensamento...

Nesse quase km encontrei, entre outras manifestações da exuberância espiritual do vale, um pagode com uma bela mandala tântrica, várias pequenas estupas dispersas, soltas, largadas pelo terreno que cerca a estrada, e um chaitya antigo.

Chaitya é um espaço para reuniões onde, normalmente, se pratica o ritual de caminhar em torno (circumambulatio) de uma pequena estupa (stupa). Na origem eram feitos de madeira, como este, mas depois passaram a ser escavados e esculpidos na rocha, como os que abundam na Índia central. No entanto, mesmo assim, os monges budistas procuraram manter, na pedra, suas antigas formas, inclusive imitando vigas, arcos, colunas, encaixes etc. Que ainda espero, em breve, conhecer pessoalmente.

Por ser uma grande estupa com espaço para circum-ambulação à sua volta, Bodhnath é considerado o maior chaitya do mundo.
Este é o local onde se reúne, hoje, a maior parte da comunidade tibetana no vale de kathmandu, que é formada por antigos imigrantes e por refugiados recentes vindos a partir da invasão chinesa ao Tibete, em 1950, principalmente após a fuga e auto-exílio do Dalai-Lama, em 1959. Aqui se asilaram com suas botas e roupas características, seus sonhos e sua religiosidade. Restauraram a velha estupa de Bodhnath (e a de Swayambhu), pintaram-na e a repintam a cada ano e substituem, com diligência, suas coloridas "bandeiras de orações". Além disso, construíram novos mosteiros pelas redondezas e ajudam, assim, a renovar toda a espiritualidade do vale.

Os laços religiosos, artísticos e comerciais entre o Nepal e o Tibete, desde há muito que são fortíssimos. Artesãos nepaleses ajudaram a construir alguns dos primeiros templos budistas no Tibete e, por séculos, mantiveram suas oficinas em Lhasa, enquanto que, periodicamente, os tibetanos têm vindo em peregrinações sucessivas aos grandes santuários nepaleses.

Bodhnath é o templo budista mais venerado de todo o Nepal. Está associado, na tradição destes imigrantes tibetanos, ao monge Padmasambhava, que foi da Índia para o Tibete no séc. VIII e, que após ter lutado contra os demônios locais, implantou ali o budismo tântrico.

Há alguns anos esta região sofreu um grande abalo sísmico e vários prédios foram destruídos. Alguns já foram refeitos mas outros ainda carecem de restauração. Ergueram-se novas construções mas, parece, que sem o cuidado de combiná-las com as antigas que houveram por bem sobreviver. A rua principal de Baudha ficou, por isso, um tanto estranha, como se o sismo tivesse rasgado um fosso no corpo do próprio tempo.

No séc. XIX foi construído um pequeno e estreito portal de entrada, feito com um delicado arco de estuque e belamente ornamentado (que eu só cheguei a conhecer por fotografia). Esse arco reduzia o campo de visão de quem entrava no recinto do templo, de tal modo, que ele travasse um súbito contato com os "olhos-que-tudo-vêem", do Buda Primordial (Adibuddha).

Esses olhos, com o sinal de um terceiro olho (da clarividência) entre as sobrancelhas, pintados em forma de pétalas de lótus nas quatro faces de um cubo de pedra erguido sobre um enorme domo de concreto, voltam-se levemente para baixo e parecem fitar diretamente o visitante. Eles contemplam as quatro direções do espaço (Norte, Sul, Leste, Oeste), símbolo de onividência e sabedoria. Símbolo da atenção e vigília, características do Desperto (Buddha).

A dramaticidade desta revelação hoje está quase perdida, pois o portal também foi destruído naquele terremoto. No entanto a visão ainda se conserva suficientemente impressionante e eu diria até... que assusta!

Antes de atravessar o muro que envolve a estupa e penetrar no recinto sagrado, fui andando distraidamente por uma rua que passava entre este muro, do lado direito, e uma fileira de casas e hospedarias para peregrinos, do lado esquerdo. Mas depois de voltar ao mesmo lugar, novamente diante da entrada, percebi que a rua era circular. Tinha feito, sem querer, uma primeira circum-ambulação.

Nesta rua eram vendidos muitos objetos usados no culto lamaísta, devidamente dessacralizados, e diversas outras peças de artesanato. Alguns carros estacionados, turistas ocidentais, jovens nepaleses, crianças andando em todas as direções, ciclistas, macacos, sugerem que o cotidiano avança como ondas se debatendo contra um rochedo que abrigue o Sagrado.

Os peregrinos contornam a estupa sempre da esquerda para a direita (sentido horário), que é o movimento do Despertar (da inconsciência para a consciência). Embora soubesse disso, eu tinha feito esse movimento inadvertidamente...

Demorei um pouco a perceber que, mesmo ainda do lado de fora, já estava fazendo parte da encenação que o monumento promove. Estava pego pelo vórtice ascendente da energia psíquica!

Procurei localizar-me, com mais atenção, no cenário proposto:

– As casas e hospedarias formam em torno do monumento um 1º círculo protetor do Sagrado. Este círculo representa o limiar entre o mundo temporal, a agitação perpétua da vida comum (as casas do vilarejo) e uma primeira aproximação ao Sagrado (como se as demais casas de Baudha, que não obedecem a uma ordenação clara, se evidenciassem, por contraste, como um aglomerado caótico e confuso, irregular). O caos começa a tomar forma (começa a girar em torno de um Centro). É como se o mundo cotidiano e real, começasse a se curvar diante de Um Outro, não menos, mas ainda mais Presente e Real.

– A rua circular configura um 2º círculo protetor do Sagrado. É o espaço vazio que recebe os caminhantes e permite uma primeira circum-ambulação e que denota, paradoxalmente, além de uma clara separação, uma maior aproximação entre os dois mundos. Fica evidente que há dois mundos e um deles é Sagrado. A consciência começa a preencher o seu espaço. É um momento de mais calma, mas ainda com alguma agitação.

– O muro que cerca a estupa é o 3º círculo protetor do Sagrado, atravessando-o, estamos diante da representação, em concreto, da ascese budista.

Do apego ao efêmero e agitado mundo ilusório à Eterna, Perfeita, Imutável, Infinita Consciência Primordial.

Esses três círculos protetores simbolizam o eterno ciclo dos renascimentos, a sucessão incessante de vida e morte, que despoja a alma e a torna apta a ingressar no espaço sagrado que a dirige ao Caminho do Meio (indicado pela própria estrutura da estupa, que deve ser galgada, a pé, devagar, sempre no mesmo movimento dextrogiro, e passando por todas as direções opostas).

E por que o Sagrado precisaria de tanta proteção?

Na verdade ele não precisa, os incautos e distraídos, como eu, é que precisam pois o Sagrado sempre nos prepara armadilhas feitas com as tramas da nossa própria alma.

Ao longo do muro, uma fileira de "moinhos de oração" (cilindros de metal fundido mostrando o principal mantra tibetano – OM MANI PADME HUM – "Salve a Jóia no Lótus!") que os peregrinos fazem girar rapidamente para melhorar rapidamente seus karmas. Tentam imitar o Buda, que gira a "Roda da Vida", mas que depois de usadas e abusadas por tantas gerações, os belos caracteres da escrita tibetana, já muito gastos, parecem ter ficado roucos em lugar daqueles preguiçosos apressadinhos.

Ao penetrar no recinto sagrado deparei-me, logo na entrada, com duas pequenas estupas que enquadravam, como guardiães, o primeiro dos três lances de escadas que dão acesso aos três terraços, que servem de base ao monumento, à estupa propriamente dita. Na verdade, como eu iria compreender mais tarde ao ver uma foto aérea do conjunto, os terraços e as escadas, fazem parte magnificamente do plano arquitetônico e simbólico do templo. Eles configuram uma belíssima mandala perfeitamente geométrica com três lances de escadas em cada um dos quatro pontos cardeais, que levam diretamente a cada um dos quatro pares de olhos.

As plataformas são quadradas e sugerem, da forma como foram desenhadas, um outro quadrado menor que indica, em seus vértices, os quatro pontos colaterais (Nordeste, Sudeste, Sudoeste, Noroeste).

A estupa se ergue no centro de uma rosa-dos-ventos!

A torre sobre o domo, encimada por uma pirâmide escalonada que se agudiza sob um guarda-sol dourado, faz as vezes de eixo e agulha desta rosa-dos-rumos, e aponta para a quinta direção do espaço: o Alto ou o Zênite (onde se revezam o Sol e a Lua).

Soltando a imaginação sobre aquela foto aérea, vi uma noiva antiga, mas de véu dourado, erguida em meio aos babados de seu vestido branco e de muitas caudas. E tornei a perceber um mar, desta vez batendo e se debatendo e batendo muitas outras vezes mais, e se espumando raivoso e impotente contra o Inamovível Rochedo Sagrado.

Após subir um lance de degraus atingi a primeira plataforma e comecei a caminhar em torno. É um amplo terraço com uma pequena estupa marcando cada uma das direções colaterais.

Feita uma volta completa subi o próximo lance de escadas e percorri outra ronda sobre a segunda plataforma, esta sem quaisquer mini-estupas, assim como a terceira, que também contornei com calma. E já estava bem acima dos telhados das casas do vilarejo quando me dei conta da aridez e inutilidade do sagrado quando apenas se gira em torno dele, ou se o reverencia, sem que ele penetre e transforme o coração "circo" ambulante.

Mais duas plataformas superpostas, desta feita, redondas, completam em duas camadas a base do monumento. Em toda circunferência da camada superior há oitenta pequenos nichos, distribuídos simetricamente, trazendo cada qual uma imagem de Buda. Em dia de cerimônias esses nichos são iluminados pelo fogo das lâmpadas de óleo.

Sobre este fantástico plinto repousa a grande hemisfera, que estiliza os originários montes de terra que serviam de túmulo aos santos ascetas da Índia, cujos corpos eram deixados no chão em postura yogue e simplesmente cobertos de terra.

Desde a época pré-budista esses túmulos eram reverenciados como lugares sagrados. Quando eram cremados, como aconteceu com o Buda Gautama, seus restos eram expostos ou guardados em montes de terra ou pedra como relíquias.

A estrutura tornou-se com o tempo uma peça arquitetônica especificamente budista, já que o pagode é usado tanto por hindus quanto por budistas. Acredita-se que a Stupa tenha sido introduzida no Nepal por volta do séc. III a.C, no reinado do imperador indiano Asoka. Não se sabe exatamente quando Bodhnath foi construída.

Da Stupa indiana, em uma superposição simbólica dos cinco elementos, do mais grosseiro ao mais sutil, foram-se desenvolvendo os Chörtens tibetanos dos quais a stupa de Bodhnath é um belo exemplo. A estrutura básica do Chörten consiste em:

– uma fundação quadrada simbolizando a terra, o chão, o elemento mais bruto;

– uma hemisfera simbolizando a água, que apesar de ser uma representação do túmulo, é também a do útero onde acontece o renascimento;

– uma torre cônica com treze anéis se afunilando, como em Swayambhunath, ou uma pirâmide escalonada também com treze degraus que vão diminuindo à medida que sobem, aludindo às etapas cada vez mais sutis da meditação, que leva ao Despertar. Simboliza o fogo;

– um guarda-sol que, sobre a torre, representa o ar, o vento ou a atmosfera.

É onde se amarram as cordas repletas de "bandeiras-de-orações" que se elevam desde o chão, cobertas por textos e orações tibetanas ofertadas pelos peregrinos. As brancas representam nuvens; as azuis, o céu; as verdes, a água; as amarelas, a terra e as vermelhas representam o fogo);

– e bem no alto de tudo: os irmãos Sol e Lua (crescente), os luminares do dia e da noite, representando o éter, o quinto e mais sutil dos elementos pois que simboliza a paradoxal união dos opostos.

Neste caso, como em muitos outros, o Chörten termina com a forma de um sino. O sino, ele próprio com a forma de uma pequena estupa, e cuja propriedade de produzir um som que reverbera e lentamente se esvanece no silêncio, também nos remete ao éter.

A hemisfera é completamente caiada em dias de peregrinação e festa. É, então, recoberta criteriosamente com camadas de amarelão ofertado pelos peregrinos criando uma ondulação que, a mim, fez lembrar as saias de gordas senhoras baianas vendendo acarajés, ou mesmo as que giram nas alas de escolas de samba. Salvador! Rio de Janeiro!. Deve ser um delírio meu, longe do mar, mas acho que tem alguma coisa a ver...

Iniciei a minha descida evitando entregar-me a um pensamento que me ocorreu: o de perfazer a mesma espiral (da esquerda para a direita) como se, simbolicamente, pudesse conservar o encantamento da subida e continuar próximo ao Sagrado mantendo a mesma atitude respeitosa. Mas isso, certamente, significaria ter ficado, imaginariamente, lá em cima, feito um maluco, sem perceber que já tinha, na verdade, descido, ficaria contornando um sagrado morto. Seria uma das armadilhas que os círculos protetores procuram evitar.

Desci direto.

Voltei à entrada do templo, que agora transformou-se em saída. Voltei à Baudha e a rua principal já não me pareceu estranha.

Vi, à minha frente, crianças brincando e se divertindo nuas, no esgoto canalizado em concreto, que corre ao longo dessa rua, como se a sujeira do corpo e a limpeza da alma pudessem conviver, mas apenas na ingenuidade infantil da consciência.

Atrás de mim, sobre o muro exterior do templo, vi um menino magro correndo e se equilibrando como eu também gostava de fazer quando era criança.

No que resta do sol da tarde, e que se manteve claro e descomplicado desde o alto da colina de Pashupatinath, vi, à minha volta, ao lado da vala, uma mãe e sua filha dormindo no chão. E vi uma bela nepalesa, com seu sari amarelo e vermelho, levando, em uma vasilha de metal, a água de alguma fonte que eu não conheço. E vi, também, alguns homens fiando e criando tramas em seu rústico tear.

Via, via, via...

No vórtice descendente dos olhos do Adibuddha via a beleza e a tragédia humana em todas as direções.

Ao começar a me afastar de Baudha, andando no que poderia ser uma calçada, senti na calma e no silêncio do "pós do sol"... uma presença. Olhei atrás e à volta mas nada vi, ninguém. Mas como a sensação de companhia continuava, olhei para cima e me surpreendi com a visão de um grande macaco que me olhava atento e quieto sobre o galho da árvore sob a qual estava passando.

Olhamo-nos nos olhos.

Naquele grande macaco, calmo, silencioso e atento, a menos de um metro da minha cabeça, senti o hálito do Senhor dos Animais (Shiva Pashupati) e a majestade do Buda Primordial.



Obs.: este artigo foi publicado na revista Rubedo

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